A concepção de Jean-Jacques Rousseau, um dos pilares filosóficos do pensamento liberal, descreve a liberdade como um estado de felicidade original, no qual os humanos existem sob a forma do bom selvagem inocente, e termina quando alguém cerca um terreno e diz: \”É meu\”. A divisão entre o meu e o teu, isto é, a propriedade privada, dá origem ao estado de sociedade, que corresponde, agora, ao estado de natureza descrito por Hobbes, segunda a qual “o homem é o lobo do homem”, ou seja, a guerra de todos contra todos. Após o surgimento da racionalidade como critério de gestão da produção capitalista, duas abordagens filosóficas são defendidas na visão liberal presente em governos, partidos ou organização social, quando explicam sua visão de mundo: o neoliberalismo e ultraliberalismo. Essas tendências estiveram presentes no governo Social Democrata do PSDB, de 1994 a 2002, e é retomada na visão conservadora de Jair Bolsonaro, no novo governo do Brasil. Para o filósofo espanhol Francisco Vergara, o traço aparente e imediatamente visível que caracteriza os ultraliberais e os diferencia dos liberais clássicos consiste, evidentemente, na hostilidade sistemática que os primeiros manifestam a respeito de qualquer intervenção do Estado para resolver um problema econômico ou social. Em oposição aos clássicos, os ultraliberais são a favor de um Estado que faça o mínimo.
A necessária redução do Estado
Os ultraliberais mais conhecidos são Herbert Spencer, Friedrich Hayek e Milton Friedman.. Seus argumentos se dedicam a descrever a redução contínua e extrema da presença do Estado, enquanto os liberais clássicos julgavam as instituições ou as leis como boas ou más segundo essas atendessem ou não a um critério ético último. Para a corrente utilitarista eram boas as instituições que contribuam para \”a maior felicidade do maior número de indivíduos\” e para a corrente dos direitos do homem eram boas aquelas que eram \”conformes a Justiça\” ou \”o Direito natural\”. O traço principal que caracteriza os clássicos, pertençam eles a uma ou outra destas duas grandes correntes, consiste na coerência teórica ou unidade princípio; ou seja, recorrem a um só e único critério ético último quando examinam questões e problemas totalmente distintos.
Utilidade pública ou Direito Natural
Assim, quando Adam Smith se pergunta qual a melhor regulamentação para a taxa de juros, para a emissão de moeda, para o ensino primário, ou para qualquer outra área ou domínio da atividade social, ele examina a questão sempre do mesmo ponto de vista. Pergunta-se quais as instituições e regulamentos mais suscetíveis de aumentar a felicidade da coletividade. Encontra-se em Turgot uma coerência teórica semelhante, com a diferença de que o critério último utilizado não é a utilidade pública (critério este que ele condena totalmente) e sim a conformidade ao Direito natural. Seja para elaborar a forma mais apropriada de regulamentar as taxas é juros, seja para descobrir a melhor maneira possível regulamentar a exploração das minas, Turgot tem sempre o mesmo raciocínio; ele procura deduzir aquilo que decorre dos princípios primeiros, aquilo que está de acordo com a Justiça.
O ecletismo dos ultraliberais
O primeiro traço que distingue os ultraliberais dos liberais clássicos é que eles operam simultaneamente com vários critérios éticos superiores, trocando o critério quando passam de um problema a outro, sem estabelecer uma hierarquia clara entre critérios. Tudo acontece como se escolhessem, para cada caso, o argumento que parecesse o mais convincente do ponto de vista retórico, sem se preocuparem em saber se se trata de um argumento de utilidade ou de Direito natural. Friedrich Hayek fornece um exemplo deste método eclético. Quando explica por que é bom para a sociedade que existam \”proprietários privados que possuem capitais substanciais\”, ele fala que a importância está na utilidade da coisa, no fato de que alguns proprietários permanecerão \”ociosos\” (não dedicarão o essencial de seus esforços à acumulação de riquezas) e que, por isso mesmo, podem ser muito úteis. \”Podem\”, diz Hayek, \”trazer seu apoio à realização de tarefas que o mecanismo do mercado não faz satisfatoriamente […] no domínio cultural, nas artes, no ensino e na pesquisa\”. Eis um argumento tipicamente utilitarista. A instituição em questão (a existência de uma camada ociosa que possui \”meios substanciais\”) é julgada benéfica (ou nociva) de acordo com as repercussões boas (ou ruins) que tem, e não de acordo com sua conformidade ou não com uma norma abstrata de justiça.
Qual o melhor regime tributário?
A questão fiscal é outra tese em que Hayek trata de um modo diferente, recorrendo desta vez a um outro critério ético. Trata-se da questão de saber qual o melhor regime tributário; em outras palavras, saber se o imposto deve ser proporcional à renda (a mesma percentagem para todo o mundo) ou se deve ser progressivo (os mais ricos pagando uma percentagem maior de sua renda). Já no início de seu raciocínio, Hayek afirma sua hostilidade a qualquer progressividade do imposto, até mesmo a mais suave. No entanto, o argumento que opõe à progressividade é muito diferente do que acabamos de ver a favor da existência de uma camada rica e ociosa. Não se trata mais de se perguntar se a instituição analisada produz consequências boas ou ruins para a comunidade. Hayek rejeita explicitamente este tipo de abordagem: \”[…] a utilização da análise de utilidade na teoria dos impostos constituiu um erro lastimável\”, escreve. O importante agora (o que se tornará o critério para aceitar ou condenar o imposto progressivo), é sua conformidade a um princípio geral mais elevado ou incompatibilidade com ele. \”Em última instância\”, escreve Hayek, \”o problema do imposto progressivo é, evidentemente, um problema ético. […] O fato de uma maioria, simplesmente por ser uma maioria, ser autorizada a aplicar a uma minoria uma regra que não se aplica a si mesma, constitui uma violação de um princípio […] [trata-se de] um abandono do princípio fundamental da igualdade perante a lei.\” Estamos aqui diante de um argumento que, pela sua forma, lembra exatamente os raciocínios de Turgot e Condorcet: o imposto progressivo é contrário ao princípio geral da igualdade perante a lei (dado que o rico paga uma taxa enquanto o pobre paga outra taxa), trata-se assim de uma instituição não conforme a Justiça; portanto é condenável; não importa quais são \”as vantagens que resultam para a comunidade no seu conjunto\”.
Liberdade, ecletismo e utilitarismo
Para evitar qualquer mal-entendido relativo ao ecletismo, é preciso salientar que nada proíbe um utilitarista consequente de julgar a conformidade de uma instituição com um princípio geral do direito. Da mesma forma, nada impede um adepto do Direito natural de enunciar qualquer julgamento sobre o caráter útil ou nocivo de alguma instituição. Condorcet, por exemplo, em seu tratado sobre a escravidão dos negros, dedica a primeira parte da obra a mostrar como todos os contratos através dos quais um indivíduo é reduzido à escravidão são juridicamente nulos do ponto de vista do Direito natural. Na segunda parte, refuta os diversos argumentos de utilidade a favor da escravidão, mostrando que não é a escravidão e sim a liberdade que é mais útil à coletividade. Turgot faz o mesmo em seus trabalhos sobre a legislação da mineração.
Dos critérios liberais, o mais sagrado é a liberdade
Os ultraliberais não se limitam a flutuar entre um e outro dos dois grandes critérios éticos adotados pelos clássicos. Eles propõem e fazem uso também – além da utilidade e do Direito natural – de um certo número de outros critérios éticos últimos que lhes são próprios e que não são encontrados na obra dos clássicos. O mais importante destes critérios é a liberdade. Para os que pregam este critério, as instituições são boas ou más, desejáveis ou condenáveis, na medida em que aumentam ou diminuem a quantidade total de liberdade. O liberalismo, segundo eles, seria a doutrina que considera a \”quantidade total de liberdade\” como o bem último e o critério ético último. Como diz Milton Friedman, em Capitalismo e liberdade: \”[…] enquanto liberais, tomamos a liberdade do indivíduo, ou talvez da família, como objetivo último que permite julgar as instituições sociais”. Fritz Machlup diz mais ou menos o mesmo; para ele, a liberdade é o bem superior: \”[…] um liberal\” escreve, \”é alguém que coloca a liberdade acima de qualquer outro objetivo social e que jamais concordará em limitar uma liberdade qualquer – econômica, política ou intelectual – a não ser como meio de atingir a realização mais completa de uma outra liberdade”. A definição do liberalismo dada por Milton Friedman e Fritz Machlup é à primeira vista sedutora. A raiz das palavras \”liberdade\” e \”liberalismo\” não é a mesma? A denominação “liberal” não é particularmente bem-sucedida para designar os que buscam \”a maximização da quantidade de liberdade\” e que colocam a liberdade \”acima de tudo\”? É preciso, no entanto, recusar esta definição do liberalismo, pois exclui as figuras essenciais deste movimento: Adam Smith e Turgot. Esses autores disseram explicitamente que colocavam \”acima de tudo\” não a liberdade, e sim a felicidade pública (no caso de Smith) e a Justiça (no caso de Turgot).
A liberdade só pode ser limitada quando algo impede sua ampliação
Tentemos ver agora as implicações da adoção do critério de \”máxima liberdade\”. De acordo com este critério, pode-se limitar uma liberdade com o objetivo de aumentar outra: colocar, por exemplo, semáforos que limitam a liberdade de tráfego dos automóveis com o intuito de aumentar a dos pedestres (evidentemente, disso é necessário resultar um aumento da soma global de liberdade). Mas nunca se deve limitar uma liberdade para promover um outro objetivo: um objetivo de bem-estar, por exemplo. Comecemos constatando que uma percentagem impressionante das instituições que existem num país como a França, por exemplo, é condenada por este critério e não existiria se ele fosse aplicado com rigor. Se a liberdade fosse o bem supremo, qualquer um poderia, por exemplo, montar um consultório médico ou odontológico, uma farmácia, uma escola, etc., sem que nenhum critério de competência fosse exigido, sem que nenhuma autorização prévia da administração pública fosse necessária. Qualquer um poderia fabricar e vender ao público medicamentos, alimentos, brinquedos e roupas para crianças, sem que estes produtos tivessem passado antes por testes de qualidade obrigatórios determinados por lei. Se o critério \”máxima liberdade\” fosse aplicado, não existiria salário mínimo (não se pode reduzir a liberdade dos contratos de trabalho para obter uma vantagem tal como o aumento da renda dos trabalhadores mais pobres). Os assalariados poderiam, ao seu bel-prazer, contribuir ou não para o seguro médico e a aposentadoria. (…)