A origem do Festival Folclórico

A disputa dos bois Caprichoso e Garantido teve origem nas brincadeiras de roda

Quem se encanta pelo Festival Folclórico de Parintins, não imagina que a maior festa popular do Norte do País surgiu para apaziguar ânimos dos torcedores dos Bois Garantido e Caprichoso. Em 2024, acontece a 57ª edição da disputa.

O festival teve início em 1965. Uma das razões para a criação do evento era a necessidade de organizar e controlar as duas grandes torcidas que se confrontavam nas ruas da ilha de Parintins (distante a 369 quilômetros de Manaus). Esses confrontos eram marcados até pela violência. Então, criar um “marco regulatório” para a brincadeira era uma urgência. A outra era arrecadar fundos para a construção da catedral de Parintins, dedicada à Nossa Senhora do Carmo, padroeira do município.

Surge então na quadra da Juventude Alegre Católica (JAC), braço da igreja católica na Amazônia, o Festival Folclórico de Parintins. A ideia era criar a disputa sadia. Foi então que surgiu, em 1965, festival. Em sua primeira fase a festa contava com diversas manifestações da cultura popular como as pastorinhas, cordão de pássaros e quadrilhas. Os bois participaram, mas não disputaram.

De fato, os bois começam a disputar o Festival Folclórico de Parintins em 1966. Apesar da intervenção da igreja em uma festa pagã, a rivalidade não cessou e os confrontos aconteciam logo após o resultado de quem era o vencedor de cada edição do evento. Em um ano, os Bois foram literalmente presos, na delegacia da cidade.

Em 1968, as mulheres até então proibidas de participar da festa começam a brincar de boi. A brincadeira que acontecia em pequenas quadras foi ganhando proporções e foi necessário adequá-la em espaços maiores. No ano de 1980, por decisão da prefeitura, o festival passou a ser realizada no Estádio Tupyzão.
No final da década de 1980, a prefeitura assumiu por completo o evento. A ideia era organizar e por fim as hostilidades. Desde então, a cidade se divide ao meio. Zona sul: Boi Caprichoso. Zona norte: Garantido. Como regra, nenhuma das duas torcidas em passeata pode cruzar os limites que tem como marco central a catedral da cidade.

Paralelo ao universo criativo que se descortinava na pequena Parintins, era inaugurado no Rio de Janeiro, o Centro de Convenções Darcy Ribeiro, o popular Sambódromo. Não tardou para que Parintins inaugurasse sua versão para o complexo em formato de arena que até hoje abriga a festa. Em 1988, o então governador Amazonino Mendes, aposta no crescimento do evento e inaugura, o Bumbódromo, arena em formato de cabeça de boi, com capacidade para centenas de pessoas. Sensível ao caráter popular do evento, o governador ordenou que os espaços das arquibancadas laterais fossem destinadas de forma gratuita, às torcidas de Garantido e Caprichoso, que fazem um espetáculo a parte durante as três noites de disputa no Festival, interagindo com a apresentação de seu bumbá. Em Parintins as torcidas são pontuadas e ajudam na matemática da vitória.

Em 2000, o Festival entra oficialmente para o calendário de Turismo do Brasil e do mundo, Em 2013 Bumbódromo torna-se Centro Cultural. No ano de 2017, o Congresso Nacional torna Parintins, Capital Nacional do Boi-Bumbá e em 2018, o Festival Folclórico de Parintins é declarado Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

A EVOLUÇÃO – O Festival Folclórico de Parintins acontece durante três noites. Sempre no último final de semana do mês de junho. Garantido e Caprichoso defendem um tema específico a cada ano. Cada bumbá tem 2h30 para realizar seu espetáculo por noite. E cada noite apresenta um subtema dentro do tema. A festa é um grande resumo do folclore brasileiro com forte conotação amazônica. Durante a exibição são apresentados 21 itens de cada bumbá, aos quais são atribuídas notas.

No evento são retratados elementos da cultura brasileira e amazônica como lendas, rituais, figuras típicas, povos indígenas e cordões de danças regionais. Tudo embalado por toadas, que são a trilha sonora das apresentações durantes as três noites de disputas.

O enorme mosaico de expressões se deve à formação social dos povos da Amazônia. Muito dessa contribuição advém do nordeste brasileiro, cujo povo sofrido pela seca, viu no Amazonas e seu fausto período da borracha, o “Eldorado”.

O norte brasileiro passou a ser o destino de milhares de nordestinos que consigo trouxeram a cultura dos folguedos juninos.

Em Parintins, essas misturas resultaram num exótico universo que une o teatro popular do Auto do Boi, com Pai Francisco, Mãe Catirina, o Negro Gazumbá, heranças do folclore nordestino às Lenda Amazônicas, como do Boto, Cobra Grande, Mapinguarí, Matinta Perêra e outras expressões do folclore popular. Se no bumba meu boi do Maranhão quem ressuscita o boi é o médico, em Parintins essa função fica com o curandeiro da tribo, o pajé.

SALTO CULTURAL – Apesar de rica culturalmente, a festa parintinense começou a ganhar ares de grande espetáculo quando na década de 1970, o artista plástico Jair Mendes foi ao Rio de Janeiro para assistir o carnaval carioca. Do Rio, levou à Parintins a ideia dos carros alegóricos, que na cidade passaram a se chamar “alegorias”. Com o passar dos anos, as alegorias ganharam tamanho, grandeza e forma, pelas mãos de artistas locais. Em meados de 1990, a genialidade parintinense fez com que os módulos e grandes esculturas, passassem a ter movimentos robóticos. Tal evolução levou as grandes escolas de São Paulo e Rio de Janeiro a contratar os talentos de Parintins. É Parintins devolvendo ao Rio, em forma de arte, a troca cultural emprestada na década de 1970.

“O festival abriga várias linguagens artísticas. De dentro desse diálogo das artes, emergem outros tantos segmentos, que foram aprimorados com a disputa. A transição da brincadeira dos terreiros para a arena do bumbódromo fez com que cada artista atingisse um nível altíssimo de excelência. Os métodos de criação e execução desafiam estudiosos e apaixonam ainda mais os torcedores”, analisa a historiadora Irian Buel.

DE ONDE VEIO O CAPRICHOSO? – Caprichoso é o Boi Negro de Parintins, que traz na testa uma estrela. De acordo com a biografia oficial distribuída à imprensa, em 1913 a Parintins antiga viu nascer, nos terreiros do “Reduto do Esconde”, pelas bandas do Urubuzal, o Boi Caprichoso.

O Instituto Memorial de Parintins (Inpim), juntamente com a professora Odineia Andrade, realizou uma intensa pesquisa baseada em documentos e narrativas mostrando que o bumbá da estrela também é oriundo de uma promessa, mas diferente do rival, foi criado por um grupo de amigos que gostavam de festas.
Em 2023, no ano em que os Bois comemoravam os seus Centenários, Irian Butel que estava à frente do Inpim, esclareceu que a instituição foi procurada pela Associação Folclórica Boi-Bumbá Caprichoso para fazer o resgate, juntamente com a professora Odineia Andrade, da história do “touro negro”, trajetória que estava perdida, entre vários nomes de fundadores e locais de criação.

Como toda pesquisa séria precisa de um norte, o instituto partiu das investigações realizadas por Odineia Andrade, que são ricas em narrativas e mostraram, pela primeira vez um nome: Roque Cid, que seria o fundador do boi Caprichoso.

“Com esse nome, tivemos que responder a pergunta crucial: ele existiu, afinal? Como pesquisadores, temos que procurar fontes e fatos”, recorda Irian.

A resposta estava em documentos encontrados com o nome Roque Cid, na Câmara Municipal de Parintins, entre os anos de 1909 a 1911. Foram encontradas três portarias com esse nome. Num documento de 1909, Antonio Cid, irmão de Roque, foi convidado a fazer reparos no Mercado Municipal de Parintins. A residência dele também foi encontrada: rua Gomes de Castro. Em outro documento de 1902, na Cúria Diocesana, Roque Cid batiza alguém com o nome Felisberto.

Pronto, Roque Cid existiu. O próximo passo foi buscar a ligação com o boi Caprichoso. Partiu-se então em busca de fontes que pudessem relatar fatos e datas. De acordo com Irian, a provável data que os irmãos Roque (pescador), Pedro (pedreiro, que participa da construção do mercado municipal de Parintins) e Antonio Cid chegam à ilha foi em meados de 1897, vindos de Crato, no Ceará, em busca do Eldorado, ou dos seringais, porém se estabilizaram em Parintins.

“Eles fizeram amizades, faziam festas, se reuniam para beber e falar de mulher, eram uns pândegos. Além disso, tinham feito uma promessa: se tudo desse certo, fundariam um boi, semelhante ao que tinha no nordeste”, afirma Odineia, lembrando que o principal local desses festejos era a travessa Sá Peixoto, conhecido como “Beco do Esconde, lugar onde foi criado o Caprichoso, segundo a pesquisadora.

“O Caprichoso já nasceu como um boi de pano, mas com estrutura de estopa e samambaia, que foi usada nos primeiros bois”, explica a historiadora Irian Buel

Baseada em narrativas, os pesquisadores chegaram à conclusão de que a criação do Caprichoso tem data definida: 20 de outubro de 1913, quando, numa reunião, tiveram a ideia de fundar o boi. Entretanto, Odinéia destaca que ele somente saiu às ruas no ano seguinte.

“Ele foi gerado em 1913, mas apareceu em 1914”, resume. Nesta data, segundo ela, tudo foi decidido, inclusive a cor negra do boi. “O Caprichoso já nasceu como um boi de pano, mas com estrutura de estopa e samambaia, que foi usada nos primeiros bois”, explica.

A pesquisa de Odinéia afirma que, diferente do que alguns acreditam, o boi Caprichoso que nasceu em Parintins não é o mesmo que existia em Manaus.
“O Caprichoso não veio de Manaus, apenas usou o mesmo nome do bumbá da capital. Esse nome caiu na simpatia de José Furtado Belém, que era amigo de festas dos irmãos Cid, e assistiu o Caprichoso de Manaus”, justifica.

Sobre o fato das críticas aos inúmeros donos e currais, a pesquisadora Odineia Andrade vê pelo lado positivo. “As pessoas têm essa mania de, quando estão à frente de algo, esquecerem os que veio atrás, e o Caprichoso teve vários donos e, com isso, fez história por onde andou. Começou com Roque Cid, a seguir por Emídio Vieira, passou por Antonio Boboim, Pedro Cid, Nascimento Cid, Luiz Gonzaga, Nilo Gama, Ervino Leocádio e Luiz Pereira. A seguir, saiu do boi da lamparina, da quinta das fogueiras e passou para ser gerido pelos presidentes com um tempo determinado. Por tudo isso, é o boi de Parintins”, conclui, lembrando que no começo, o boi tinha um padrinho, que ajudava em tudo que fosse necessário, e, além disso, as amizades que Roque Cid tinha com os políticos fazia a brincadeira acontecer.

De lá para cá, o Boi Caprichoso ganhou os quintais e as ruas, sempre brincando e alegrando gente pobre, negra, indígena e ribeirinha, refletida na estrela azul e branca da testa do Boi Negro da Ilha. Sob lamparinas de Seu Lioca e cumprimento da promessa junina, fortalecia-se, aos poucos, uma festança popular que, ao longo das gerações, permitiu que os parintinenses sonhassem outros futuros, tecidos por meio dos saberes e da sensibilidade de nossa gente cabocla, energizada na utopia e na busca de uma imaginada revolução oriunda desde a nossa ancestralidade.

Os artistas populares, com suas esculturas superlativas, ganharam o Brasil e o mundo, tornando os brincantes do Boi Caprichoso, os mais aguerridos lutadores da cultura parintinense, como se auto definem.

Metamorfosearam o ritmo tradicional e o ambiente do folguedo em espetáculo capaz de mobilizar multidões e de colocar em cena a louvação à Mãe Natureza, ao passo em que se denunciam as violações dos direitos dos povos da floresta.

DE ONDE VEIO O GARANTIDO ? – O Boi-Bumbá Garantido é uma das duas Associações que disputam o Festival Folclórico de Parintins, no Amazonas. Criado pelo pescador Lindolfo Monte Verde, ainda no início do século passado, o boi branquinho de coração vermelho na testa, era uma brincadeira de criança que evoluiu com o tempo.

Seu criador era descendente de negros escravizados, humilde pescador nascido na ‘Baixa da Xanda’, bairro pobre, vila de pescadores negros e mestiços da remota Parintins dos anos 1900, que depois virou “Baixa do São José”.

A neta do fundador de Lindolfo Monteverde, Cleumara Monteverde, enfatiza que o boi vermelho e branco nasceu de uma brincadeira de criança. Ela conta que via a necessidade da família ter mais dados concretos sobre Lindolfo e, consequentemente, sobre o surgimento do Garantido.

Para Cleumara, existe uma grande dificuldade de encontrar algo concreto sobre a data de fundação do boi. Para fundamentar sua busca, buscou os “arquivos vivos”: seus tios e contemporâneos do avô, que relataram fatos que vivenciaram. Foi atrás da velha guarda do Garantido, onde estavam incluídos seus tios mais velhos, Reinaldo e Raimunda Monteverde, que faleceram durante o período da pesquisa, e Maria do Carmo, ainda viva. Entre as primeiras confirmações está o fato de que Lindolfo, diferente de cogitações, nasceu em Parintins em 2 de janeiro de 1902.

“As pessoas nunca imaginaram que eles chegariam ao que representam hoje, então é difícil ter alguma documentação que comprove datas específicas”, avalia.

Entre os fatos mais importantes dentro de toda a pesquisa, Cleumara aponta a confirmação do Garantido ter nascido a partir de uma brincadeira de criança. Nas lembranças de seus tios, descobriu que a criança Lindolfo ouvia história de seus avós, que não está claro se eram originários de alguma parte do nordeste ou mesmo da África.

“Contam que ele ouvia as histórias de um boi que dançava para divertir adultos e crianças. Ele criou o boi para manter a brincadeira que seu avô lhe contava. Seu primeiro boi foi feito de curuatá (o invólucro de uma planta chamada inajá) que colocava nas costas e saia brincando”, explica.

Para ela, algumas pessoas ficam incrédulas ao ouvir que uma criança fez isso, mas avalia – como pedagoga – que é perfeitamente normal a imaginação das crianças fluir a partir de objetos inusitados. Ainda dentro do que confirmou com os parentes e contemporâneos do avô, Cleumara afirma que a mãe de Lindolfo, Dona Alexandrina, conhecida como Xanda, foi a maior incentivadora da brincadeira. “Ela sempre fez ele acreditar que quando fosse maior teria o seu boi, igual aos bois das histórias de seu avô, ou seja, um boi grande, o que hoje denominamos boi de pano, pois o seu era de curuatá”, diz.

O Mestre Lindolfo Monterverde possuía uma voz potente e uma extrema facilidade para o jogo de rimas. Assim, era sempre vencedor nos duelos de repentes, batalhas poéticas que em Parintins são denominadas de “desafio”.

Apesar de ter sido criado para ser uma brincadeira de pescadores, o Boi Garantido tem sua identidade preservada, a partir de uma promessa de vida. Se não fosse a promessa, talvez hoje o Garantido não existisse. Lindolfo Monte Verde era devoto de São João Batista. Ainda jovem, ficou gravemente enfermo. Ele e sua família, prometeram ao santo junino, que caso Lindolfo Monte Verde tivesse o pedido de cura alcançada, teria por obrigação “por o boi na rua” a cada 24 de junho, dia de São João Batista.

Cleumara confirma que o Garantido já existia, como boi de pano, quando Lindolfo, ao ficar doente (mais ou menos com 17 anos) prometeu que se ficasse bom, haveria uma ladainha (missa cantada) e o boi sairia às ruas.

Graça alcançada, é promessa cumprida. Alguns apontam que a primeira ladainha da promessa aconteceu em 24 de junho de 1917. Para Lindolfo, brincar de boi estava ligado à religiosidade popular. Para sair pelos terreiros ele angariava recursos com os comerciantes.

Mesmo tendo falecido em 1979, todos os anos, seus descendentes põem o Garantido para sair nas ruas de Parintins. Sempre após a Ladainha ao Santo, que acontece na Baixa de São José. Nessa noite as fogueiras, os fogos de artifícios, jovens, velhos e crianças seguem o boi pelas ruas de Parintins, como pagamento da promessa feita há mais de cem anos.

O símbolo do Garantido é o “coração”, que fica localizado na testa. Suas cores são o vermelho e o branco. É também conhecido como o “Boi do Povão”, “Boi da Paixão” e “Boi da Promessa”.

O nome Garantido, com o qual Lindolfo batizou seu boi, segundo uma das versões propagadas, deriva das batalhas de rua que tiveram seu auge nos anos 1950 e 1960. As batalhas eram encontros entre os bois, que surgiram na ilha de Parintins, por volta dos anos 1920 e 1930. Por ser “duro na queda”, Lindolfo dizia que na hora em que o Garantido dava uma “cabeçada” no outro boi, sua madeira (chifre) era firme e se “garantia” no confronto.

O filho de Lindolfo, Reinaldo Monteverde, numa das inúmeras entrevistas para Cleumara Monteverde, o nome Garantido é realmente no sentido de ele se garantir mesmo.

A filha de Lindolfo, Maria do Carmo Monteverde, além das lembranças de muitas passagens da vida de seu pai, também guarda (e ninguém a faz mostrar) fotos, toadas da fundação e várias relíquias. Entre elas, a certidão de batismo do fundador do boi da Baixa, que está registrada no livro da Cúria de Parintins.
Maria do Carmo relata que o pai contava que brincou com o boi de curuatá até por volta de 12 anos. A partir daí, surge o boi de pano que saia pelas ruas da ilha. Ela lembra que o patriarca teve um derrame em 1966 e durante 13 anos sofreu por não poder acompanhar as brincadeiras de sua criação. “Ele não tinha mais movimentos do lado direito e não falava mais. Sofria muito e essa dor só aumentava em junho quando ouvia os fogos e não podia acompanhar”, recorda, completando que ele ficava deitado em sua rede, chorando.

Dona Maria recorda que o pai mantinha uma plantação de juta, e a maior parte do que era vendido servia para dar suporte ao boi. “Apesar de ele receber alguma ajuda, era nossa família mesmo que mantinha a brincadeira. Já lavei e cortei muita juta para colocar o Garantido para brincar. E agora aparece muito dono do boi por aí”, lamenta.

Texto por Chris Reis
Fotos: Divulgação

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