A região Amazônica, apesar de ser cercada por rios e ter a maior bacia hidrográfica do mundo, a Bacia do Rio Amazonas, enfrenta desafios históricos e ainda hoje significativos em relação ao acesso à água potável e ao saneamento básico, especialmente na Região Norte. Embora seja um direito humano essencial, o fato é que esse direito é inacessível para boa parte da população, como mostra o Ranking do Saneamento 2024, do Instituto Trata Brasil.
No levantamento, divulgado em 20 de março, às vésperas do Dia Mundial da Água, comemorado em 22, nenhum município da Amazônia figura entre os 20 melhores em saneamento. No entanto, os municípios da região Norte predominam na lista dos 20 piores, totalizando sete. A lista tem ainda outras duas cidades da Amazônia Legal: Várzea Grande (MT), na região Centro-Oeste, e São Luís (MA), no Nordeste.
O Ranking divulgado pelo Trata Brasil avalia os 100 municípios mais populosos do país, considerando os indicadores do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), ano-base de 2022, publicado pelo Ministério das Cidades. A lista é divulgada anualmente, há 16 anos.
André Machado, especialista em saneamento e coordenador de Relações Institucionais do Trata Brasil, destaca os desafios enfrentados pelos municípios brasileiros, especialmente na região Norte, evidenciados pelo último Ranking do Saneamento.
“A situação é preocupante, com 36% da população ainda sem acesso ao sistema de abastecimento de água e apenas 14,7% do esgoto coletado e tratado”, avalia. “Apenas a Região Norte é responsável pelo despejo de cerca de 579 piscinas olímpicas de esgoto todos os dias na natureza”, completa o coordenador.
André Machado enfatiza ainda que o impacto do saneamento inadequado vai além da saúde pública, afetando diretamente a dinâmica social e econômica das comunidades. Ele destaca a contribuição da exposição ao esgoto não tratado para o aumento alarmante de doenças, como as diarreicas, gerando um ônus adicional para o sistema de saúde pública e impactando negativamente na produtividade e na renda das famílias.
Nesse contexto, Machado ressalta a importância do saneamento básico como tema central nas eleições municipais deste ano, enfatizando a necessidade de os candidatos apresentarem propostas concretas em seus programas de governo e da população considerar o saneamento como um critério fundamental na escolha de seus representantes para promover mudanças significativas e aproveitar essa janela de transformação social, em benefício do desenvolvimento sustentável das comunidades.
As 20 melhores x 20 piores no Ranking
A ausência das regiões Norte e Nordeste na lista das 20 melhores cidades no Ranking, enquanto essas mesmas regiões aparecem com predominância nas 20 piores, deixa claro o que há em comum nas melhores cidades e o que falta nas piores.
Para André Machado, um indicador significativo é a análise do investimento total por habitante. No conjunto dos 20 melhores municípios do país, o investimento anual resulta em uma média superior a R$ 200 por habitante. Em contrapartida, o grupo dos 20 piores investe em média cerca de R$ 73,85 por habitante, representando uma diferença de 173%.
“Importante registrar que o saneamento, enquanto segmento de infraestrutura, é um setor demandante de investimentos, né? Ele exige capacidade econômico-financeira para que os investimentos sejam feitos. Os municípios precisam acessar esses investimentos para construir e estabelecer ali as obras que vão levar os serviços às pessoas. Seus sistemas de saneamento básico precisam de recursos para a manutenção desses sistemas e também para se investir em tecnologias e aprimoramento dos serviços para poder ver, cada vez mais, eficiência na prestação de serviço”, destaca André.
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Palmas – No Ranking divulgado pelo Trata Brasil em 2023, Palmas, capital do Tocantins, era a única cidade da Região Norte no Ranking das 20 melhores, ocupando a 16ª posição. No entanto, no ranking divulgado este ano, a cidade caiu nada menos que dez colocações, aparecendo, agora, na 26ª posição.
André Machado destaca que a estabilidade dos indicadores de Palmas contribui para a queda no ranking, já que outros municípios avançaram mais. Isso é especialmente evidente no tratamento de esgoto, onde, segundo ele, Palmas não registrou progresso significativo.
“A interpretação mais indicada para essa queda no ranking deve-se ao fato de que outros municípios conseguiram avançar mais do que a capital do Tocantins nos indicadores e contribuiu para a queda também que Palmas acabou não avançando muito no indicador de tratamento de esgoto, que continua na casa dos 64,5% de cobertura.”, afirma.
Apesar da queda no ranking, o coordenador ressalta um aspecto positivo: Palmas já investe um montante semelhante ao dos 20 melhores municípios do país, acima de R$ 200 por habitante ao ano. Portanto, segundo André, melhorando o tratamento de esgoto, é provável que Palmas conquiste melhores posições nos próximos anos.
Nos últimos dez anos, o panorama do saneamento básico no Brasil revela uma persistente dificuldade em diversos municípios. É o caso das três líderes entre as 20 piores, Porto Velho (RO), Macapá (AP) e Santarém (PA), que sempre apareceram entre os dez municípios em pior situação nesse período, um reflexo dos desafios persistentes nessas localidades.
Apenas 1,71% do esgoto é tratado em Porto Velho
Os dados do Ranking do Saneamento 2024 chamam a atenção para a realidade de Porto Velho (RO). Segundo o Instituto Trata Brasil, nos últimos 10 anos, a cidade tem permanecido entre as 10 piores colocadas no ranking e, no levantamento divulgado este ano, ainda passou do segundo para o primeiro lugar nessa lista, trocando de posição com Macapá, que tinha o pior saneamento do país no ranking divulgado em 2023. O levantamento recente mostra que na capital de Rondônia apenas 9,89% da população recebe o serviço de tratamento de esgoto, e somente 1,71% do esgoto é efetivamente tratado.
Em relação ao atendimento de água, o menor percentual registrado no ano-base 2022 foi de 41,79%, justamente em Porto Velho. No ano-base anterior, 2021, o menor índice encontrado foi de 26,05%, no mesmo município.
Um dos indicadores apresentados no Ranking 2024, o “Índice de Perdas no Faturamento”, refere-se à água produzida e não faturada. Em Porto Velho esse índice foi de 74,44%. Ou seja, uma proporção significativa de água distribuída na cidade não entrou na receita, seja por furto, falha nos medidores, ou por ter sido perdida durante a distribuição (ex: vazamentos), representando um desafio considerável em termos de gestão de recursos hídricos e eficiência no fornecimento de água.
No “Indicador de Perdas por Ligação”, onde quanto menor for esse volume, mais bem classificado o município deve estar, pois uma menor parte do volume de água produzida é perdido por ligação e por dia, a situação de Porto Velho é a pior do país, já que a capital de Rondônia registrou um volume de 1.537,70 litros por ligação por dia em 2022, o pior entre os 100 municípios analisados no ranking. Segundo o Trata Brasil, esse valor é quase sete vezes mais que o patamar considerado ótimo, que é de 216 litros por ligação por dia.
Em relação ao indicador de atendimento total de água, Porto Velho registrou 41,79%, o menor do país, que, no entanto, mostrou uma evolução em relação ao ranking divulgado em 2023, quando o índice mais baixo encontrado foi de 26,05% no mesmo município.
Porto Velho também registrou um dos menores investimentos médios anuais por habitante entre as capitais brasileiras. Durante o período de 2018 a 2022, a cidade investiu apenas R$ 37,47 por habitante. Este valor está significativamente abaixo do patamar nacional médio de investimentos anuais necessários à universalização, estimado em aproximadamente R$ 231,09 por habitante pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB).
Questionada sobre a situação atual do saneamento básico em Porto Velho, a prefeitura emitiu uma nota oficial em resposta, declarando: “A Prefeitura de Porto Velho está atualmente submetendo um processo relacionado ao abastecimento de água e esgotamento sanitário para análise pelo Tribunal de Contas de Rondônia. O município aguarda o parecer deste órgão para dar continuidade ao projeto.”
Sede da COP 30 melhorou desempenho, mas ainda tem o 8º pior saneamento do país
Belém (PA), cidade que sediará a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, em 2025, passou da 95º, colocação, na lista de 2023, para a 93º, no ranking divulgado este ano. Uma melhora ainda bem longe do necessário para o bom atendimento de seus habitantes.
No geral, a capital paraense apresenta resultados negativos em quase todos os indicadores do Ranking do Saneamento divulgado este ano, o que a deixa em 8º lugar na lista das 20 piores.
Em relação ao tratamento e coleta de esgoto, por exemplo, dados do Trata Brasil indicam que Belém coletou apenas 17,12% e tratou menos de 3,63% do esgoto gerado. A cidade ocupa a 94ª posição em acesso à coleta de esgoto, com 19,88% da população atendida.
Quanto ao volume de esgoto tratado em relação à água consumida, Belém está em 97º lugar, com apenas 2,38%. Os investimentos médios totais por habitante, entre 2018 e 2022, foram de R$ 106,92, bem abaixo do patamar de R$ 231,09 considerados necessários, segundo o PLANSAB.
Em nota enviada à PIM Amazônia, a Secretaria Municipal de Saneamento de Belém (Sesan) ressaltou que, “desde a implementação da Lei nº 11.445 de 2007, apenas uma entidade pode ser responsável pelos serviços de água e esgoto em cada município. Assim, em 4 de novembro de 2015, o antigo Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Belém foi extinto, transferindo todos os sistemas para a Companhia de Saneamento do Pará (Cosanpa) por meio do Contrato de Programa nº 1/2015.”
No entanto, é importante ressaltar que, segundo o Instituto, no indicador investimentos médios por habitante, por exemplo, considera-se não apenas os investimentos realizados pelos prestadores do serviço, mas também os investimentos realizados pelo poder público.
Por sua vez, a Cosanpa informa que atende 52 dos 144 municípios paraenses. Segundo a empresa, “em parceria com o BNDES e BID, está investindo em obras de tratamento de água e esgoto em Belém e Região Metropolitana (onde fica Ananindeua, também presente no ranking das 20 piores). Em Santarém, por exemplo, obras do novo Sistema de Abastecimento de Água incluem a Estação de Tratamento e a perfuração de 13 poços, dos quais 5 já foram entregues.”
André Machado, especialista em saneamento e coordenador de Relações Institucionais do Instituto Trata Brasil, ressalta que “um tratamento eficaz e um serviço de saneamento eficaz começam a ser conquistados quando o saneamento básico se torna uma prioridade municipal”. Ele destaca a importância de o saneamento estar na agenda pública local e ser reconhecido tanto pelo poder público quanto pela sociedade civil como uma prioridade. Além disso, Machado ressalta a necessidade de um “planejamento estruturado para a prestação de serviços e a disponibilidade de recursos para viabilizar as obras e garantir a entrega do serviço à população.”
Quanto aos eventos de grande visibilidade e importância, como a COP, Machado reconhece que eles “certamente contribuem para criar o ambiente político necessário para que as mudanças sejam feitas.” No entanto, ele enfatiza que, para além desse incentivo ocasional, é fundamental “uma atuação contínua das instâncias de regulação, do Ministério Público e da própria sociedade civil para acompanhar a prestação de serviços, fiscalizar e garantir a qualidade dos serviços ou mesmo sua prestação efetiva.”
Manaus fornece água, mas deixa a desejar no tratamento do esgoto
Manaus (AM), é uma das duas cidades que alcançaram mais de 99% de atendimento total de água, ao lado de Pelotas (RS), no Ranking divulgado em 2024. No entanto, na avaliação geral, é a última cidade da Amazônia presente no Ranking das 20 com o pior saneamento no país, ocupando a 15ª colocação e com uma piora em seus resultados, que a fez passar da 83ª colocação geral entre as 100 cidades avaliadas no ranking de 2023, para a 86ª, no divulgado este ano.
Em relação ao tratamento total de esgoto, Manaus não atingiu a meta de 80%, tratando apenas pouco mais da metade disso (44,74% do esgoto gerado), conforme a NBR 9.649/1986, que “fixa as condições exigíveis na elaboração de projeto hidráulico-sanitário de redes coletoras de esgoto sanitário, funcionando em lâmina livre, observada a regulamentação específica das entidades responsáveis pelo planejamento e desenvolvimento do sistema de esgoto sanitário.”
Além disso, o investimento médio anual por habitante em saneamento básico, embora tenha sido superior a alguns dos municípios em pior colocação no ranking, ainda está aquém do necessário para a universalização, representando apenas 37% do investimento dos 20 melhores e 32% do necessário conforme o PLANSAB. Esses dados indicam que, apesar dos avanços, Manaus ainda enfrenta desafios significativos no que diz respeito ao saneamento básico.
A Prefeitura de Manaus, ao ser questionada sobre os resultados do ranking, ressaltou pontuou os avanços alcançados nos últimos quatro anos no saneamento básico da cidade. “A capital alcançou a universalização no abastecimento de água tratada com mais de 99,4% da população atendida, sendo a cidade brasileira que mais evoluiu no atendimento total de água tratada.”. diz a nota. A Prefeitura também ressaltou iniciativas como a expansão da Tarifa Social, beneficiando mais de 650 mil pessoas, e a redução das perdas de água em mais de 17%. “Em termos de investimento, Manaus é a capital do Norte que mais investiu em saneamento básico desde 2018. No período, foram mais de R$ R$ 1,2 bi investidos. O cenário coloca a cidade de Manaus como a 6ª que mais promoveu investimento no setor”.
Quanto ao esgotamento sanitário, embora o serviço esteja disponível para aproximadamente 30% da população, a Prefeitura destacou que está em execução o programa Trata Bem Manaus, que visa à universalização desse serviço, com um aporte estimado de R$ 2 bilhões em investimentos. Por fim, a Prefeitura esclarece que parte das melhorias realizadas nos últimos anos ainda não foi contemplada nos dados do Ranking do Saneamento Básico de 2024, que utilizou indicadores de 2022 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), e ressalta que em Manaus, o serviço de abastecimento de água e esgotamento sanitário é uma concessão pública operada pela empresa Águas de Manaus pertencente ao Grupo AEGEA.
A concessionária divulgou informações logo após a publicação do ranking, onde destaca que “O serviço de água, universalizado desde 2023 na capital amazonense, hoje alcança mais de 2 milhões de pessoas e segue em expansão acompanhando o ritmo de crescimento da cidade”. Sobre o esgotamento sanitário, a empresa também mencionou o programa Trata Bem Manaus, e afirmou que “para alcançar a universalização do serviço, a Águas de Manaus fará a implantação de mais de 2,7 milhões de metros de redes coletoras de esgoto nos próximos anos, além de obras de implantação e ampliação de pelo menos 70 Estações de Tratamento de Esgoto (ETE’s), espalhadas por todas as zonas da cidade.”
Mesmo com maior investimento, Cuiabá caiu 18 posições no ranking
Outro caso que chama a atenção quando avaliado o desempenho das cidades amazônicas presentes no Ranking do Saneamento 2024 é o de Cuiabá. A capital de Mato Grosso, teve o maior investimento médio anual por habitante, entre as capitais do país, com R$ 472,42 por habitante. Isso é significativo, especialmente considerando que o patamar nacional médio de investimentos anuais necessários à universalização, de acordo com estimativas do PLANSAB, é de aproximadamente R$ 231,09 por habitante.
No entanto, Cuiabá caiu 18 posições no Ranking, passando da 32ª posição, em 2023, para a 50ª, em 2024 – a segunda maior variação negativa registrada no ano. Segundo André Machado, a situação da capital do Mato Grosso se deve principalmente ao fato de que um indicador importante, o de tratamento de esgoto. “Apesar dos grandes investimentos em Cuiabá, que foram os maiores entre as capitais brasileiras e os terceiros maiores do país, a cidade perdeu posições no ranking de 2024. Isso aconteceu principalmente porque a porcentagem de tratamento de esgoto caiu de 71,5% para apenas 49,5%, em comparação com o ano anterior. Isso fez com que Cuiabá ficasse muito longe da Meta Nacional de alcançar pelo menos 90% da população com cobertura de esgotamento sanitário. “, explica o coordenador.
O coordenador ressalta que o ranking é uma “fotografia do momento”, e que o setor de saneamento básico, como parte da infraestrutura, deve ser acompanhado em médio e longo prazo.
Ao site g1, a empresa Águas Cuiabá afirmou que o problema em relação ao tratamento de esgoto é reflexo do baixo índice de conexões residenciais à rede de esgoto. A concessionária ressaltou que muitos bairros já contam com rede coletora disponível, no entanto, os moradores precisam fazer a ligação da tubulação.
“O indicador de tratamento do esgoto sobre a água consumida tem forte peso entre os critérios de avaliação, representando 25% da nota atribuída aos municípios. Os dados utilizados no ranking se referem ao cenário de 2022, sem contemplar avanços já registrados desde então”, disse a empresa.
*Gustavo Jordan, estagiário. Reportagem sob a supervisão de Ana Danin, editora executiva PIM Amazônia