ECOLOGIA INTEGRAL: UM CONCEITO ESTRUTURANTE

Paulo R. Haddad(*)

No próximo ano, a população brasileira estará discutindo o futuro do País através dos debates e das controvérsias em torno dos programas de governo que os diversos partidos políticos deverão apresentar ao longo do processo eleitoral. Diante de indicadores típicos de uma recessão econômica (baixa taxa de inflação, elevados índices de desemprego e de subemprego, crescimento econômico inexpressivo) a qual se estende desde 2014 com risco de se transformar em depressão econômica até 2018, a atual política econômica do Governo Federal tem sido a de enfrentar essa questão através do experimento do modelo de austeridade fiscal expansionista. Uma política que tem se mostrado necessária, mas não suficiente para equacionar simultaneamente os dois principais problemas de curto prazo do Brasil: o equilíbrio macroeconômico e a retomada sustentada do crescimento econômico.

 

Paradigma italiano

Segundo esse modelo, cuja formulação principal tem origem na Escola Bocconi da Universidade de Milão, fundada por Luigi Einaudi, medidas tomadas segundo um programa de consolidação fiscal destinado a reduzir a participação do Governo na economia e da sua dívida em relação ao PIB, têm um efeito indireto sobre as expectativas de consumidores e de investidores que, num contexto de maior confiança, promoverão uma expansão da economia maior do que a contração causada pelos indispensáveis cortes orçamentários. Reduções nas despesas públicas tenderiam a promover o crescimento econômico pela confiança que geram nos consumidores, produtores e investidores. É a origem italiana do modelo de austeridade fiscal expansionista, impregnado por uma desconfiança sobre a intervenção do Estado na economia e dentro do moderno pensamento neoliberal.

 

As aparências ofuscam

Aparentemente esse seria o modelo mais apropriado para equacionar os atuais problemas da economia brasileira após a desordem das finanças públicas produzida por uma sequência de ações macroeconômicas voluntariosas e casuísticas. Soma-se a isto a necessidade de se promover o reequilíbrio financeiro da Previdência Social cujos déficits tendem a se agigantar celeremente ao longo das duas próximas décadas, bem como os impactos da imprevidência fiscal sobre as dívidas públicas da União e dos Estados, que se agigantaram perigosamente. A decisão de colocar um teto na despesa pública do Governo Federal se apresenta como um contra-ataque oficial a essa tendência de insolvência financeira. As alternativas prováveis seriam o colapso das finanças públicas estaduais e federal, ou uma desastrosa hiperinflação que atingiria principalmente os segmentos menos favorecidos da população. Não é difícil vender um programa de austeridade fiscal para uma população que foi educada psicologicamente visando a receber como fato normal atos punitivos após ter cometido atos de abusos comportamentais. Trata-se da imagem de uma síndrome do crime e castigo, muito impregnada na consciência popular. Se numa fase do ciclo econômico o governo gastou em excesso, distribuiu ad nauseam um conjunto de subsídios financeiros e de incentivos fiscais (ainda que no espírito de um capitalismo de compadrio), sem critérios de eficiência econômica ou de justiça social, afrouxando também a acessibilidade às benesses das políticas sociais compensatórias, então é de se esperar que surjam os tempos de ajuste, de sacrifícios e de desalento numa nova fase mortificante do ciclo econômico.

 

Adequação temerária

Porém, a ideia singular e monotemática da mera austeridade fiscal é perigosa, ou uma ideia não muito boa quando generalizada como planilha ou proposta de ajuste de qualquer economia que se encontra desestruturada e fragilizada. A austeridade fiscal não é uma política adequada para ser implementada em vários contextos. Não é adequada quando as taxas de juros estão próximas de zero e as taxas de crescimento e de desemprego não reagem às mudanças na política monetária. Não é adequada quando o conjunto das economias mais desenvolvidas está deprimido não deixando espaço para as exportações das economias periféricas menos desenvolvidas como alternativa de expansão da demanda agregada. Não é adequada para países membros de uma União Monetária que não podem substituir autonomamente a insuficiência da demanda interna pela demanda externa através da desvalorização monetária. Mas, mesmo considerando que as atuais circunstâncias da economia brasileira necessitam passar por um profundo processo de ajuste fiscal e financeiro, não será qualquer ajuste que poderá trazer de volta o crescimento e os empregos para a nossa população. Corte despesas, aumente os impostos e elimine subsídios e incentivos que a confiança de investidores, empresários e consumidores voltará e trará novamente a prosperidade econômica! Slogans e clichês não faltam para justificar um ciclo de sofrimentos com desemprego e, muitas vezes, inflação corretiva seguido de um novo ciclo de expansão econômica, mobilizando o senso comum de uma população desinformada. Há até mesmo uma frase de Machado de Assis que caracteriza essa idiossincrasia através das Memórias Póstumas de Brás Cubas “considerei que as botas apertadas são uma das maiores venturas da terra, porque fazendo doer os pés, dão azo ao prazer de as descalçar. Mortifica os pés, desgraçado, desmortifica-os depois”.

 

De volta às boas lições

Quando se observam duas experiências bem sucedidas de estabilização monetária no Brasil durante o período histórico Pós-II Grande Guerra, há muitas lições a serem aprendidas. O Plano Real foi uma experiência de sucesso que conseguiu abortar a hiperinflação brasileira e, de forma inteligente, reduziu uma taxa de inflação de 30 por cento ao mês para uma taxa de inflação de 6% ao ano num curto espaço de tempo. Por outro lado, como não implementou um conjunto sistemático de reformas econômicas e institucionais, deixou como legado as sementes de um déficit público que se tornaria crônico e crescente nos anos seguintes, tanto em termos orçamentário quanto previdenciário e, igualmente, não conseguiu estruturar um ciclo sustentado de expansão econômica. Por outro lado, o programa de estabilização Campos-Bulhões da segunda metade dos anos 1960 foi estruturado no tripé da reforma monetária (com gestão da dívida pública e criação do Banco Central) das reformas econômicas (novo sistema tributário; criação do sistema nacional de poupança e do Banco Nacional da Habitação, institucionalização do FGTS, do crédito direto ao consumidor, da promoção de exportações, da desburocratização, etc.) e de um Plano Decenal de Desenvolvimento. Criou-se, assim, condição necessária e suficiente para que viesse a ocorrer “o milagre econômico” dos anos 1970, quando o crescimento econômico do País se deu a taxas superiores às que se observaram na China em anos recentes.

 

Planos e metas

Ao longo de 2018, estaremos à procura do tempo perdido em termos do desenvolvimento brasileiro uma vez que tudo indica que o período de 2008 a 2018 irá se caracterizar como uma nova década perdida para o progresso econômico e social do País. Será preciso construir um processo de planejamento de médio e de longo prazo, articulado com um programa de estabilização macroeconômica, visando a atingir três objetivos simultânea e complementarmente. O primeiro objetivo é manter um ritmo adequado do nível de emprego capaz de acomodar quase dois milhões de brasileiros que se mobilizam e se reposicionam anualmente nos diferentes mercados de trabalho. O segundo objetivo é gerar um excedente econômico que permita financiar as necessidades crescentes das políticas sociais compensatórias visando a atenuar os índices de pobreza e de miséria, assim como atenuar eventuais tensões sociais e políticas em nosso país. Finalmente, essa taxa de crescimento tem a função de manter acesa a chama do que Keynes denominava “o espírito animal” dos nossos empreendedores efetivos ou potenciais, além de uma expectativa recorrente de confiança no nosso progresso econômico e social.

 

Renovação de ideias

Não é uma tarefa difícil estabelecer uma lista de políticas, programas e projetos de desenvolvimento sustentável que poderiam compor um processo de planejamento nacional ou regional. Nem é difícil até mesmo estabelecer os instrumentos e mecanismos de mercado assim como as estruturas regulatórias que devem ser acionadas para que o plano venha a ser implementado visando a tirar o País do atoleiro recessivo. É preciso, contudo, que haja uma renovação de ideias que sejam capazes de reduzir incertezas, construir coalizões, empoderar protagonistas para resolver crises estruturando novas instituições alinhadas com as novas ideias, etc. Há, na verdade, diversos documentos preparados atualmente em órgãos do setor público ou em instituições do setor privado visando a indicar o que é preciso fazer e como fazer para que o País saia da crise econômica e social. O problema é que acaba se listando um conjunto amplo de objetivos, metas e diretrizes que podem ser inconsistentes entre si; que desconhecem as restrições e condicionalidades socioeconômicas e político-institucionais para sua execução; que não delimitam os trade-offs (compensações ou conflitos de escolha) dentro desse conjunto; que nivelam objetivos e metas sem saber se são redundantes ou como deveriam ser hierarquizados em termos de prioridades; que não percebem os impactos distributivos (entre classes sociais, entre regiões e entre setores produtivos) que o seu processo de implementação gera, etc.

 

Caminhos da Ecologia Integral

Fundamentalmente, coloca-se o desafio do hiato na coordenação político-administrativa quando aumenta o grau de complexidade e de transversalidade institucional no processo decisório das diferentes formas de intervenção dos três níveis de governo no Brasil. Não se pode, por exemplo, obter sucesso nas políticas de mitigação das mudanças climáticas sem articulá-las com as políticas industriais, energéticas, de transporte. Contudo, também não se pode subestimar o grau de complexidade de se articular e coordenar unidades administrativas públicas nas diversas esferas de governo, relativamente autônomas e com desígnios próprios, como, por exemplo, Ministérios no âmbito federal, de forma absolutamente consistente com objetivos complexos. Nessa linha operacional, é indispensável que haja um conjunto de conceitos e de ideias inovadoras que dialoguem com os tempos presente e futuro e que tenha capacidade de estruturar uma Grande Transformação na realidade socioeconômica do Brasil. Propomos que uma dessas ideias seja a da Ecologia Integral que aparece muitas vezes na literatura econômica com a denominação de “Ecologia Profunda”, “Capitalismo Natural”, “Desenvolvimento Social Sustentável”, etc. Preferimos o conceito de Ecologia Integral tal como proposto na Encíclica LAUDATO SI’, elaborada com a colaboração de mais de cem dos maiores especialistas mundiais em ecossistemas e biodiversidade, pois esse documento (setembro de 2015) do Papa Francisco tende a ter a maior influência em escala planetária sobre a consciência ecológica de todos os povos e nações.

 

Políticas, programas e projetos

Uma leitura cuidadosa da ENCÍCLICA nos fornecerá os elementos essenciais para que possamos estruturar um processo de planejamento que vise à construção de políticas, programas e projetos de desenvolvimento socioeconômico sustentável que levem a uma Grande Transformação no sentido proposto pela obra de Karl Polanyi. A tese central da Encíclica está expressa no argumento: “Dada a escala de mudança, não é mais possível encontrar uma solução específica e discreta para cada parte do problema. É essencial encontrar soluções abrangentes que considerem as interações entre os próprios sistemas naturais com os sistemas sociais. Não estamos diante de duas crises separadas, uma ambiental e outra social, mas uma crise complexa que é, ao mesmo tempo, social e ambiental. Estratégias para uma solução demandam uma abordagem integrada para combater a pobreza, restaurar a dignidade dos excluídos e, ao mesmo tempo, proteger a natureza”. A leitura da Encíclica deve se processar como uma proposta de Grande Transformação tanto na percepção que as pessoas têm da gravidade da atual crise ecológica do Planeta quanto na precária insuficiência das ações que os homens e mulheres vêm conduzindo para mitigar e evitar as catástrofes e os colapsos no meio ambiente. Não é apenas um documento que avalia as condições de bem-estar das sociedades nem um plano de ajustes nas políticas públicas ambientais. A Encíclica recusa a estabelecer um tipo de relacionamento desrespeitoso entre o Homem e a Natureza no qual a Natureza é tão somente um mega-almoxarifado de onde a sociedade humana extrai serviços e ativos ambientais para o seu consumo e deposita os resíduos e os dejetos de seu padrão de vida. Não aceita uma ideologia ambientalista que ingenuamente acredita que as forças desregulamentadas do mercado trarão o progresso tecnológico capaz de superar os processos de produção e de consumo intensivos de poluentes e de danos ecológicos. Tanto o seu diagnóstico quanto as suas diretrizes de desenvolvimento socioeconômico sustentável constituem um conceito estruturante a fim de que se elabore um Plano Decenal de Desenvolvimento para o Brasil, articulado com um programa mais consistente e rigoroso de estabilização macroeconômica, com base em um conjunto sistemático e justo de reformas econômicas e institucionais. Estamos falando da reinvenção de um Brasil mais competitivo globalmente, com melhor distribuição da renda e da riqueza nacional e com maior sustentabilidade de seus ecossistemas e da sua biodiversidade.

(*) Professor Emérito da Universidade Federal de Minas Gerais, ex-Ministro da Fazenda e do Planejamento da República Federativa do Brasil (1992-1993) do Governo Itamar Franco, ex-Secretário da Fazenda e do Planejamento do Estado de Minas Gerais (1979-1982), consultor do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento, do PNUD, da ECLA e de outras organizações públicas e privadas, nacionais e internacionais, Presidente da PHORUM Consultoria e Pesquisas em Economia e Diretor da AERI – Análise Econômica Regional e Internacional. Publicou diversos livros e artigos em jornais especializados no Brasil e no Exterior, dentre os quais, um dos mais recentes intitula-se “Meio Ambiente, Planejamento e Desenvolvimento Sustentável”, lançado em 2015, pela Editora Saraiva. Foi um dos fundadores do CEDEPLAR/UFMG, tendo sido o seu primeiro diretor. Foi também o primeiro secretário-executivo da ANPEC. Consultor qualificado da FIPE FEA USP, publicou recentemente o e-book “Economia Ecológica e Ecologia Integral”, sobre a Encíclica Laudato Si, do Papa Francisco. 

 

Esta Coluna é publicada às quartas, quintas e sextas-feiras, de responsabilidade do CIEAM. Editor responsável: Alfredo MR Lopes. [email protected]

Entrevistas

Rolar para cima