CNI: Bioeconomia auxilia Brasil na recuperação econômica no pós-pandemia

Dois anos depois da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) lançar mundialmente o termo bioeconomia, em meados de 2009, o professor e pesquisador José Vitor Bomtempo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), criou no Brasil o Grupo de Estudos em Bioconomia. Segundo seus pares na indústria e na academia, Bomtempo foi um dos primeiros especialistas a trabalhar no Brasil com o conceito de bioeconomia, que tem como base o uso de recursos genéticos da biodiversidade para criar produtos de alto valor agregado. 

Ao todo, o grupo conta com cinco professores das áreas de biologia, economia, química e engenharia, especializados em economia da inovação e gestão da inovação, e dez alunos de mestrado e doutorado.

Em entrevista à Agência CNI de Notícias, Bomtempo, que também leciona no Instituto de Economia da UFRJ, destaca que a bioeconomia está se estruturando no mundo todo e, com isso, o Brasil tem a oportunidade de ser um protagonista e não um seguidor como foi em processos industriais anteriores, como o do setor automobilístico e petroquímico.

“Para o Brasil, a bioeconomia traz uma perspectiva de regionalização, de descentralização, que pode ser bastante valorizada e importante na recuperação econômica no pós-pandemia”, aposta.

Pensando nisso, recentemente, Bomtempo decidiu desenvolver com o grupo que coordena um estudo para analisar os diversos ambientes da bioeconomia no Brasil, os chamados ecossistemas de inovação da bioeconomia. A ideia, segundo ele, é ajudar a estruturar essa agenda no país desde as grandes culturas, como cana-de-açúcar, milho e soja, até estruturas familiares de exploração de matérias-primas da biodiversidade. 

Confira a entrevista completa a seguir:

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – Como foi que percebeu que a bioeconomia seria um oportunidade para o Brasil?

JOSÉ VITOR BOMTEMPO – Na minha origem de engenheiro, ao longo do mestrado e doutorado, comecei a estudar a questão da inovação na indústria. No doutorado, trabalhei com a indústria petroquímica, com produção de plásticos. A partir da grande era dos biocombustíveis, que ocorreu entre 2005 e 2006, como tinha foco no problema da inovação, comecei a olhar os biocombustíveis como um desafio importante, visto pela ótica dos estudos de economia e gestão da inovação.

Aí rapidamente começamos a perceber que o problema mais importante não era necessariamente a produção de biocombustíveis que, obviamente, é uma atividade muito importante particularmente no Brasil, que é pioneiro, é líder, é um produtor importante. Mas um ponto crucial que percebemos ali, que iria se desenvolver ao longo do século, seria a lógica de aproveitamento das matérias-primas renováveis, a lógica de aproveitamento das biomassas. E isso é uma coisa muito maior que biocombustíveis. Então, por volta de 2011 e 2012, começamos a usar o termo bioeconomia para caracterizar a utilização sustentável –  com validação econômica, social e ambiental – das matérias-primas renováveis.

Foi dessa forma que começamos a falar em bioeconomia e eu arrisco a dizer que o Grupo de Estudos em Bioeconomia foi dos primeiros no Brasil a usar e a insistir no termo como a melhor referência para caracterizar o surgimento desse processo de transição industrial.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – Frente ao que estava ocorrendo lá fora, como foi seu despertar para o potencial do Brasil na agenda de bioeconomia?

JOSÉ VITOR BOMTEMPO – Por volta de 2009 e 2010, tivemos oportunidade de trabalhar com a Braskem no começo do interesse da empresa em utilizar matérias-primas renováveis que desembocou em diversas iniciativas, sendo a mais conhecida o polietileno verde, que é o plástico feito a partir do etanol. Contribuímos na elaboração do road map que a empresa construiu para entender essas perspectivas dos diversos produtos e potencialidades das matérias-primas renováveis. Foi o momento em que a gente pôde olhar as iniciativas internacionais que estavam começando a surgir. Ainda era predominantemente com foco em biocombustíveis, mas já começava a surgir empresas, até impulsionadas pelos biocombustíveis, que procuraram caminhos mais amplos com produtos de maior valor ou melhor margem e menos dificuldade de produção.

Não se tinha experiência acumulada sobre esses novos produtos. No entanto, percebemos que tratava-se de um processo que  modificaria significativamente a estrutura industrial. Realmente é um processo de transição industrial, como alternativa às matérias-primas de origem fóssil. E é um processo que não está estruturado em lugar nenhum do mundo. Há iniciativas de diversos países nesse sentido, mas é um trabalho de estruturação de novas atividades e novos negócios. Isso faz dele um assunto muito interessante para o Brasil porque o país lida historicamente com muitas atividades industriais em que ele era um participante retardatário. A bioeconomia é talvez das raras oportunidades em que uma atividade nova, promissora, inovadora e de fronteira em que temos a possibilidade de participar dessa atividade em paralelo com o que está acontecendo nos demais países.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – De que forma o fortalecimento da agenda de bioeconomia pode contribuir para ajudar o mundo em momentos como pandemia?

JOSÉ VITOR BOMTEMPO – Existe uma frente de empresas, organizações e países que propõem o que eles chamam da “recuperação verde”, em uma recuperação baseada no que chamam de green deal. Se a gente entender que a bioeconomia faz parte da transição dos processos tecnológicos em geral, que faz parte na transição de um sistema baseado nos recursos fósseis, mas que não os substitui totalmente, ela terá, sem dúvida, um papel importante no pós-pandemia, já que uma das lições de saída desse período é sabermos lidar com a dimensão da sustentabilidade. Se isso se firma, a bioeconomia ajuda a responder. Fará parte de todo o processo de reconstrução. Talvez o único paralelo que podemos tentar equiparar a esse período é o da reconstrução da Europa e do mundo após a 2ª Guerra Mundial. Faz parte encontrar setores dinâmicos e que tragam inovações porque isso qualifica os empregos e gera renda e emprego.

A bioeconomia, assim como as energias renováveis e de transporte, tudo isso são coisas que podem encontrar grandes oportunidades de desenvolvimento e podem ser boas respostas para os desafios que vão ser colocados. Uma característica da bioeconomia, que pode ser importante na recuperação, é o fato de ser uma atividade com perspectiva de regionalização, de descentralização. No entanto, é difícil apostar em qualquer coisa agora, ainda lidando com o lado de superar os desafios de saúde.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – Mesmo com o avanço, ao longo dos anos, produtos da bioeconomia têm dificuldade de se viabilizar. A que se deve isso, mesmo o mundo tratando de questões importantes vinculadas a essa agenda, como a mudança climática?

JOSÉ VITOR BOMTEMPO – A primeira questão é que se trata de um processo com desafios tecnológicos importantes e longos para se chegar no produto, com condições de ser utilizado. O segundo problema é a inserção do produto no mercado. Esse problema cai meio na questão do ovo e da galinha: como não há facilidade para entrar no mercado, você não tem volume e, como não tem volume, tem de melhorar e baixar custo e, como não baixa custo, não entra no mercado. Há dificuldades inerentes à novidade. Se eu for rever o que eu lia sobre energia solar há dez anos, eu pensava que aquilo estava muito longe de ser competitivo, de ser interessante, de ser adotado. Mas um processo sustentado e continuado de melhoria do produto e de redução de custo levou essa tecnologia a se tornar competitiva e mais viável de ser adotada. Então, acho que os outros produtos passam por esse mesmo processo.

Um produto aparentemente simples, que todo mundo gostaria de fazer, que é o etanol celulósico, o etanol feito a partir da palha, do bagaço da cana-de-açúcar, se revelou de uma dificuldade tecnológica enorme. Houve programas fortes nos Estados Unidos e no Brasil para destravar essa produção e ela ainda tem dificuldades, muito aos poucos está indo. Ainda está se aprendendo muito sobre como se usar essas matérias-primas. As matérias-primas renováveis são muito desafiadoras. Elas são, para começar, muito variáveis. Você tem a cana, que tem o bagaço, que tem a palha. Se pensar nas outras culturas, nos outros resíduos, você começa a ter uma variedade de problemas, de qualidades de matérias-primas a serem tratadas, que trazem grandes desafios.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – Que tipos de incentivos deveriam existir no Brasil para alavancar a bioeconomia?

JOSÉ VITOR BOMTEMPO – Órgãos como Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) tiveram programas muito interessantes no campo da oferta, de criar condições para a produção do etanol de segunda geração ou de novos produtos químicos a partir das matérias-primas renováveis, como bioplásticos. O outro lado – e a experiência que temos nesse terreno ainda é pequena – seria as políticas de demanda. No entanto, a política de demanda tem diversas alternativas que são complexas, dependentes de estudos específicos.

Hoje fala-se muito na “taxa carbono”, que seria colocar uma taxa que seria paga por todos os produtos pelo seu conteúdo de emissão de carbono. Essa seria uma ideia que economistas ao redor do mundo sempre defendem como sendo talvez a melhor forma. Essa é uma taxa que tem toda uma dificuldade de ser colocada, mas que ela colocaria a competitividade, por exemplo, de um bioplástico em um nível interessante para ele ser utilizado. Há ainda uma experiência americana bem interessante em que os produtos com conteúdo renovável como o bioplástico recebe um rótulo que o certifica como um item renovável. Isso já funciona como espécie de marketing. Também existe o caminho das compras públicas, em que é possível comprar esses produtos até 30% mais caros que os sem conteúdo renovável. Esse é mecanismo que tenta criar demanda.

Em algumas cidades e regiões, foram adotadas políticas de restrição aos plásticos nos mercados. Isso poderia ser combinado com a valorização de outros produtos que fossem considerados sustentáveis. A legislação foi mais no sentido de restringir os produtos indesejáveis. Ela não foi combinada com uma valorização daqueles que poderiam ter melhores propriedades, melhores características. É importante que a produção industrial e as empresas sejam mais competitivas, inovadoras, mas com um desenho sofisticado. Isso tem de ser bem elaborado, bem estudado para encontrar os espaços. Se a gente encontrou um espaço para inserir 27% de etanol na gasolina, então, nós podemos encontrar um mecanismo semelhante e efetivo para outros produtos. 

AGÊNCIA CNI – No Brasil, há perspectiva no curto prazo de o país puxar agenda de bioeconomia?

JOSÉ VITOR BOMTEMPO – O cenário, às vezes, exige que a gente faça um certo esforço para enxergar as oportunidades. Uma das coisas em que somos muito carentes e que demoramos muito a ter é uma estratégia nacional para a bioeconomia. Isso é uma coisa que não é simples de elaborar porque a bioeconomia é muito transversal. Tem uma parte que está lá no Ministério da Agricultura, outra que está na Ciência e Tecnologia, na Indústria, na Energia. Então, é um esforço de governança, de organização, de coordenação muito grande,  sofisticado e que exige muito esforço. A gente está demorando a ter isso. Mas existe trabalhos sendo feitos hoje, sobretudo, no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, que estão tentando dar esse passo.

A CNI fez eventos interessantes em 2012 e 2013, com convidados do exterior, lançando um pouco o termo bioeconomia no cenário brasileiro. A Associação Brasileira de Bioinovação (ABBI) está cada vez mais presente e hoje existe uma frente parlamentar para a bioeconomia. Então, a bioeconomia está saindo no jornal, está sendo conhecida e reconhecida. Eu sempre me surpreendo ao encontrar pessoas que estão trabalhando em grupos que estão debatendo o tema. Está crescendo iniciativas nos estados para trabalhar a bioeconomia. Tenho algum otimismo sobre isso.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – Que setores da bioeconomia seriam mais promissores no país?

JOSÉ VITOR BOMTEMPO – As oportunidades da bioeconomia são de uma dimensão tal. Metade da cana do mundo está no Brasil e, com o desenvolvimento ao longo dos anos, o lado agrícola ganhou muita produtividade e muita eficiência. Tem desenvolvimento a ser feito obviamente, mas é uma cultura extraordinariamente nossa, com uma base muito bem estruturada de matérias-primas, de recursos para a bioeconomia. O açúcar que dá o etanol, que dá o polietileno verde da Braskem, pode dar uma variedade enorme de material, de produtos químicos de maior valor, produtos para cosméticos, aromas, fragrâncias, aditivos para alimentos. É uma árvore riquíssima de produtos.

Há ainda uma lógica muito importante na bioeconomia que é valorizar os resíduos. Temos até começado a falar de bioeconomia circular, para mostrar que se deve tentar fechar o ciclo. Se eu tenho o etanol, o resíduo deve voltar, seja por meio da geração de energia ou de um outro produto. Essas são as oportunidades das grandes matérias-primas como a cana-de-açúcar, o milho, a soja. Outro terreno que são os recursos que podemos chamar da biodiversidade. Cada planta, cada fruta, cada açaí, cada cupuaçu, cada produto desse que até a gente desconhece, é uma fonte de uma lógica de exploração completamente diferente de uma usina de etanol e energia. Então, a gente tem dificuldade de mapear, de saber a extensão da variedade e o que ela pode trazer. São coisas que são regionais, familiares, de pequena escala e que vão exigir uma estruturação para gerar valor, gerar produtos interessantes da bioeconomia e que exigirão esforços que estão pra ser feitos. 

No campo das oportunidades, o único risco que a gente tem é de subestimá-las. A gente tem que ser muito ruins, fazer muita coisa errada durante muitos anos para não conseguir explorar esses recursos. Mas certamente uma coisa interessante da bioeconomia é que é uma atividade que está se estruturando no mundo todo e temos a oportunidade de ser protagonistas e não um seguidor. No automóvel, fomos seguidor; na petroquímica, fomos seguidor. Na bioconomia, podemos jogar na primeira divisão.

AGÊNCIA CNI DE NOTÍCIAS – Como vê a questão da aproximação da indústria com as universidades para alavancar a bioeconomia?

JOSÉ VITOR BOMTEMPO – O nosso grupo, como está muito mais em uma questão de economia e administração, a gente não está no laboratório. Nosso interlocutor é a indústria. Se tivermos que investir na interação, temos de fazer a interação com os pesquisadores, com universitários. Com a parte de fora, temos relações frequentes e esporadicamente fazemos estudos, damos cursos. É uma questão que já evolui, mas que ainda tem suas amarras. Há uma onda recente de maior interesse pelo empreendedorismo, pela criação de startups de jovens acadêmicos. No entanto, é relativamente pequena em certas áreas da bioeconomia. Talvez esse fluxo de empreendedorismo ainda seja predominantemente baseado em tecnologia da informação. Na biotecnologia, na química e outras bases tecnológicas ainda estão um pouco mais devagar. Incentivar startups é o caminho que pode virar essa questão.

Se olhasse há dez anos, eu teria praticamente interesse quase zero dos alunos em criar uma empresa. Tenho colegas pesquisadores nessa área de bioeconomia que certamente tivessem nos Estados Unidos já teriam criado empresa há muito tempo, pelo nível deles, pelo conhecimento que eles têm. Mas eles não encontraram espaço,  não tiveram essa agressividade ou os próprios mecanismos existentes não os incentivaram a empreender. O perfil americano é extremamente agressivo nisso. Se eles virem a possibilidade de criar uma empresa a partir de sua pesquisa de doutorado, ele vão fazer. Muita gente cria uma empresa, quebra; faz outra, quebra; e é assim que surgem empresas em diversas áreas.

*Informações Agência CNI de Notícias
Foto: Divulgação

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